Quando tudo parecia ser tão distante daqui: a eclosão das narrativas sobre covid-19

Fabio Malini
26 min readJul 27, 2020

A incerteza de tudo
na certeza de nada.
(Carlos Drummond de Andrade, do poema “Balanço”)

Essa série de ensaios sobre covid-19 e redes sociais pretende analisar como as Narrativas nas redes sociais, em seus diferentes contextos da pandemia, vão configurar as disputas entre lideranças políticas, revelar os posicionamentos de corporações, abrigar os sentimentos de dor, alívio e perda, tornar-se objeto de revolta por parte de movimentos sociais e até moldar as políticas públicas no Brasil.

Partimos de uma constatação: narrativas em plataformas digitais estão a orientar e moldar comportamentos fora delas, produzindo ou revertendo danos individuais e coletivos, entrelaçando-se numa dupla guerra a céu aberto: a que ocorre na vida cotidiana offline, resultante dos conflitos político-econômicos provocados por uma pandemia que deixou o capitalismo à beira de um colapso, sem nenhuma receita para reverter a depressão que se avizinha; e uma outra guerra, simbólica, nas redes sociais, capaz de dividir ainda mais a sociedade brasileira através de práticas políticas e culturais que banalizam a morte, desqualificam a ciência e normalizam um futuro feito apenas com os “mais fortes”, fortalecendo assim um cenário onde a acumulação social de conflitos se intensifica e já se apresenta como inevitável. O controle da pandemia no Brasil parece viver no meio dos versos drummondianos, publicados no tão conhecido poema Balanço: “A incerteza de tudo / na certeza de nada”.

No meio desse futuro, uma pedra no caminho: o desgoverno Jair Bolsonaro, que faz do Brasil o epicentro global da pandemia, cujo custo, até o instante dessa escrita, é de 86 mil mortes por covid-19.

Assim o que introduzimos neste primeiro trabalho são os elementos biográficos próprios do começo da pandemia nas redes sociais brasileiras, através de uma ideia simples: explorar, de modo longitudinal, como as narrativas sobre covid-19 vão formando uma cronologia, no qual chamamos de timeline discursiva de redes de narrativa, aproveitando do fato que qualquer narrativa online tem uma forma-rede (de atores, de palavras, de imagens, de links) que se metamorfoseia no tempo. Este é um primeiro ensaio, que começa focando o janeiro de 2020. Tudo dando certo, os próximos trabalhos cobrirão períodos distintos, entrando e saindo no tempo presente, com a tarefa de historiar o tempo real.

O que é uma narrativa em rede?

A palavra narrativa tornou-se um dos muitos jargões de quem frequenta as redes sociais. Como também uma outra que dela deriva: a “contra-narrativa”. Nas redes sociais, “emplacar” uma narrativa significa conseguir que uma grande quantidade de pessoas “embarque” nela, “caía” numa ou “abracem” uma certa visão sobre um dado acontecimento. Do contrário, pode-se até “montar” uma ótima narrativa, mas ela não vai “colar”. É porque uma narrativa, para ser boa, boa mesmo, não pode ser “forçada”, porque há coisas que não se “encaixam” na narrativa. Por exemplo, isso ocorre quando os atores, longe da verdade factual, “insistem” numa narrativa, fazendo tudo para “caber” qualquer coisa dentro dela, daí ela pode “sair pelo ralo”. Uma narrativa precisa ser “sustentada” para ter um selo de confiável, tem de se basear na realidade, porque, assim, vai conseguir desviar o foco para aquilo que, para si, é mais relevante. Esse é o caminho para se “ganhar” a narrativa, isto é, vencer a “guerra de narrativas”, que é quando até seus adversários “alimentam-na” , ou melhor, a “compra”, “aderindo-a”, “endossando-a”, virando “escravo” dela. Mas, a depender do correr dos dias, é preciso “mudar” a narrativa, afinal, as redes são efêmeras, e ela, a narrativa, pode “cansar” e não “durar” muito tempo, sendo “desmontada”, quando não “quebrada”, nas conversações sobre um tópico. Se isso acontece é o “fim” da narrativa; para ser mais exato, o fim não é o final da história, mas a saturação de “performá-la”. Por isso, para muitos, o melhor é “corrigir” a narrativa e “recuperar o controle” dela, dando elementos novos para um grupo “dizer o que convém” a sua narrativa, “reforçando-a”, fazendo com que, ao final, a narrativa “seja sempre a mesma”, a hegemonia.

Todas associações com o termo narrativa, redigidas acima entre aspas, foram extraídas de mensagens publicadas no Twitter. Compomos esse mosaico de conexões para demonstrar como a palavra saltou das redes sociais, onde se popularizou, direto para espaços distintos do nosso cotidiano. Virou vocabulário entre políticos, empresários, trabalhadores, militantes, adolescentes, enfim, de todo um conjunto de atores que, ao observar a palavra passando continuamente pelo nosso “feed” diário, fez-nos indagar: o que é uma Narrativa?

Em sua forma digital, o termo recupera boa parte do seu correspondente analógico: a ideia de “Versão”. Se antes havia a “guerra de versões” na imprensa; hoje, há a “guerra de narrativas” nas redes sociais. Antes fabricada por assessores especializados em promover na imprensa interpretações favoráveis sobre um dado acontecimento para seus clientes; hoje, é manipulada em plataformas digitais por influenciadores em canais de mídias sociais, difundindo conteúdos que dão sentido singular aos fatos, customizando-os em função da crença ou do interesse dos grupos que dirigem esses canais.

Toda narrativa em rede está materializada num universo vocabular próprio, que se adensa conforme o tempo passa, sendo reproduzida por um grupo de perfis para enfatizar uma versão dos fatos e emplacar uma viralização (compartilhamentos, views e likes), para então buscar o domínio do fluxo das conversações públicas e, então, atrair ao redor de si os seus próprios adversários, sufocando-os com diferentes declarações feitas por uma rede de propagandistas e replicadores que comungam de um mesmo ponto de vista.

A narração em redes sociais é então a condução da trama da vida social para um determinado enfoque cuja moral é a de manutenção do status quo. O oposto disto, as contra-narrativas — um esforço de minorias para romper diferentes modos de submissão estabelecida por dinâmicas de poder que atravessam as plataformas digitais. Com a pandemia de covid-19, observamos, sentimos e reagimos diariamente à narrativas online que buscam dirigir condutas que produzem (ou revertem) danos individuais e coletivos offline. Na narrativa do “novo normal”, por exemplo, oferecem-nos a reabertura econômica mesmo que o pico do contágio do vírus no Brasil esteja alto. Na narrativa da gripezinha, a aceleração do contágio e o colapso do sistema de saúde. Na narrativa sobre a cura/prevenção, no lugar de ciência, automedicação abusiva com remédio de verme sendo prescritos por políticos e associações médicas de todo país. Na narrativa da cloroquina, gente morta, presidente ressuscitado. A narrativa é a doutrina da verdade do poder, um modo pervasivo de disseminar seus valores e crenças. Não é só terreno do falso na factualidade (fake news), mas sobretudo a veracidade do sistema de crenças revelado. Por isso que buscamos entender aqui a Narrativa como um par invertido das fake news.

Toda fake news é uma emulação de uma Narrativa, mas sem fatos verificados que as sustentem como algo crível. Já a Narrativa, quando construída e disseminada, é uma ferramenta para reconstituir o acontecimento para um lugar de crença de um coletivo, e sempre a partir de fatos verificados. Por isso que ela não tem narrador único, pois que se explicita de modo objetivo (como léxicos comuns) na variação dos discursos dos atores que a enuncia. A narrativa é a verdade para o acontecimento, partilhada para reforçar o sistema de crenças de um coletivo em posições de poder. Diferente das fake news, a narrativa não reivindica a falsidade para funcionar. Mas, a veracidade, que marcada por sua relacionalidade, ou seja, pela certeza da existência de contra-narrativas (primeiras), mobilizam seu ecossistema narrativo para reforçar continuamente um ponto de vista que interrompa a instabilidade que críticas que se voltam a um sistema de dominação. As narrativas são então dependentes dos fatos. E reativas a ele, sendo montada de acordo com o surgimento de um novo “acontecimento crítico”, como se o padrão hipertextual das redes inserisse em seus participantes uma experiência de adaptação a toda vez que a programação do mundo se alterasse por completo.

A “primeira narrativa”: a do mistério

No rastro desse colapso informacional gerado pelo #coronavírus no Twitter, nosso primeiro trabalho genealógico foi o de rastrear a palavra corona vírus (e seus modos de existir nas redes sociais, como hashtags e perfis). Os primeiros posts que encontramos confirmam que o vírus e a doença estavam inscritos em comentários e notícias associando-os ao desconhecido ou misterioso. O vírus era um enigma, servindo de justificativa para que, no começo da epidemia, se formasse um estado de alerta global, ainda que apenas compartilhado por uma pequena comunidade científica. Quando 2020 se iniciava, sabia-se que vários pacientes com pneumonia severa chegavam em ritmo acelerado em hospitais de Wuhan, na China. Mas não se sabia a causa disso. Por isso a covid-19 era chamada de “doença “misteriosa” nas redes, termo adotado inicialmente pela imprensa profissional. Antes mesmo de 2019 acabar, todo um universo vocabular do rumor (“I heard that”) e da imprecisão (“disturbing information”) se registrava para explicar os casos em Wuhan, que então descartava que os doentes tinham SARS ou MERS. As narrativas do mistério tinha então que lidar com a imprecisão, à medida que não havia respostas para desvendar as causas e efeitos daquela pneumonia.

Com maior difusão em língua inglesa (mas não só), o léxico da incerteza evoluía e se concretizava na definição da doença (‘mystery illness’), no uso de verbos modais expressando possibilidade (may be), no uso jornalístico das aspas para demonstrar certa incredulidade (“find cause”), na hesitação com léxicos acerca dos dados sobre a doença (“we know or don´t know”), na expressão de falta de certezas (“not sure”), ou mesmo na afirmação de desconfiança (“this is suspicious”) e de imprecisão epidemiológica (origen desconocido) .

Em português, os relatos eram escassos até o dia 13 de janeiro de 2020, quando havia apenas um acumulado de 38 posts inéditos sobre o tema. No Twitter brasileiro, a primeira menção ao termo #coronavirus data do dia 08 de janeiro. E foi escrita pelo jornalista André Biernath (@andre_biernath), especializado em cobertura científica da área de saúde para a Revista Veja. Ao comentar um tuíte do Wall Street Journal, Biernath reproduzia o sentimento de incerteza informacional do período: “A doença infecciosa misteriosa que apareceu na China recentemente parece ser provocada por um novo tipo de coronavírus, da mesma “família” dos causadores de MERS e SARS.” A mensagem foi curtida por três perfis. Obteve um compartilhamento, feito pelo próprio autor.

Como primeiro modo de visualizar o vocabulário desse momento, elaboramos a Figura 01, uma teia de palavras (grafo) desenvolvida a partir de posts contendo a palavra coronavírus em português, entre 31/12/2019 e 13/01/2020. Quanto mais próximas estão as palavras uma das outras, maior é proximidade de sentido que são capazes de criar. É uma teia que dá uma dimensão das preocupações advindas desses escassos 38 tuítes (o nome dado para ‘post’ no Twitter) quando do alerta de emergência na China. E, basicamente, há dois grupos de significados que dominaram o mote narrativo no período de 30/12 a 13/1/20: o da territorialização e o do sentimento de incerteza.

Figura 01 — Rede de Narrativas sobre CoronaVírus a partir de posts sobre corona vírus publicados no Twitter de 31/12/19 a 13/
Figura 01 — Rede de Narrativas sobre CoronaVírus a partir de posts sobre corona vírus publicados no Twitter de 31/12/19 a 13/01/2020, portanto, no princípio do surto de covid-19 na China. As publicações foram coletadas via API do Twitter tendo o português como idioma selecionado.

O primeiro, o da territorialização, é representado pela cor vermelha na Figura 1. As palavras que mais se correlacionam revelam à espacialidade da doença: ‘China’, ‘autoridades’, ‘pneumonia’, ‘doença’ se entrelaçam, servindo de metáfora que enfatiza o local onde o problema sanitário ocorre. O segundo grupo, o de sentimento de incerteza, verde na Figura 1, reúne o vocabulário do mistério, com léxicos que denotam uma mistura de incógnita e medo do ‘desconhecido’. A teia de palavras desse grupo verde é um sintoma do estado de alerta que começava a ser desencadeado no Twitter. Os verbos ‘gera’, ‘pode’, ‘preocupa’, incorporados a ‘surto’, ‘sars/mers’ e ‘origem’, denotam esse estado de ameaça que se construía nas trocas conversacionais. Os efeitos da doença eram sentidos, mas não compreendidos, em função da causa ser “desconhecida”. A palavra ‘surto’ é a que mais se relacionava à coronavírus, citado 58 vezes; seguida de “causadores” (52 vezes), um termo vinculado a notícias que presumiam que um corona vírus poderia ser a “causa” da doença respiratória; e “desconhecida”, 45 vezes presentes em tuítes, significando a incompreensão sobre o que ocorria na China.

Foi só no dia 12 de janeiro, através de uma thread (sequência de posts), em inglês, no Twitter, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) confirma a hipótese científica de que a doença misteriosa estava ligada a um novo coronavírus, o 2019-nCoV. E eleva a doença ao status de surto epidêmico, contudo, de modo reticente, decreta qque não havia evidências de que a transmissão do vírus acontecesse de pessoa pra pessoa. “Informações mais abrangentes e investigações em andamento são necessárias para entender o surto epidemiológico do novo coronavírus”, dizia o comunicado. Na genealogia da pandemia, este é o momento que se inicia a ingestão de notícias negativas embaladas por uma narrativa de medo do desconhecido, mas ainda reportado no Ocidente como um sentimento que pertencia ao lado de lá, oriental, longe demais das capitais ocidentais, como pode ser lido em algumas das principais notícias daquele momento, que as listo a seguir:

  • G1 (a partir de reportagem da BBC): Novo vírus que causa doença pulmonar misteriosa gera temor na China, mas há motivo para preocupação?
  • G1 (a partir de reportagem da Deutsche Welle) : China tem 1ª morte por misteriosa pneumonia viral
  • Folha de São Paulo: Doença respiratória misteriosa mata dois na China e gera alerta nos EUA
  • Revista Super Interessante: O que se sabe sobre a pneumonia misteriosa que está avançando na China
  • R7: Vírus misterioso infecta chineses e acende alerta para nova epidemia
  • Público (Portugal): Uma estranha forma de pneumonia está a preocupar a China. Causa é desconhecida
  • Zero Hora: Vírus misterioso que já causou três mortes na China é registrado na Coreia do Sul
  • Jornal do Commercio: China tem novos casos de pneumonia misteriosa
  • BBC Brasil: Coronavírus na China: após casos triplicarem, o que se sabe sobre a misteriosa doença https://t.co/gA4ZU62MnG
  • Estadão: China registra sexta morte por vírus misterioso e confirma transmissão entre humanos

Essa narrativa do mistério, até o final de janeiro, será apropriada por governistas no Brasil para gerar um sentimento anti-China nas redes sociais, que, na época, foi uma saída governista para proteger as alegações de Bolsonaro, então reticente, quanto a necessidade de resgate de famílias brasileiras que residiam em Wuhan (se estas soubessem como estaríamos hoje, possivelmente, por lá ficavam). “Espero que os dados sejam reais”, questionava o presidente Jair Bolsonaro, desconfiando da atuação da China na geração de dados confiáveis que subsidiavam a OMS para estabelecer o estado de alerta global em torno da epidemia. Mas esse fenômeno será o nosso objeto em próximo ensaio, sobre a emergência do negacionismo. Seguimos, agora, retratando a semana seguinte, de 14 a 21 de janeiro de 2020.

A segunda narrativa: a da urgência

Se apenas 38 posts em português ilustravam o cenário da propagação da covid-19 até o dia 13 de janeiro de 2020, o contágio digital se acelerou depois disso, dando um salto no dia 21 de janeiro, quando acumulou 10.623 publicações em português, conforme ilustra a Figura 2. O dia 21 marca o instante em que pandemia torna-se assunto do momento no Brasil. Já, no final da terceira semana de janeiro, no dia 28, o tema ultrapassa a marca de 153 mil tuítes só em português, e será o período da entrada em cena da rede negacionista disputando as conversações público (sobre isso, de novo, nos dedicaremos em um próximo ensaio).

Figura 2 — Quantidade de tuítes sobre coronavírus (01 a 28_1_20)

A primeira menção do governo Bolsonaro sobre o surto de coronavírus, publicada em um tuíte, com hashtag e tudo, através da conta do Ministério da Saúde, aconteceu no dia 21 de janeiro de 2020. Demonstrava que a Administração era notificada do que vinha pela frente, ainda que a primeira mensagem tenha sido um desmentido de um boato que correlaciona o CoronaVírus a um outro que circulava no país, o ArenaVírus.

No dia 21, a imprensa e os órgãos multilaterais de saúde global (OMS, OPAS) continuam a dar o ritmo ao noticiário, informando o primeiro caso registrado nos Estados Unidos e reportando a disseminação de mais casos e mortes na China. Era como a ficha começasse a cair na forma de relatos sobre a ameaça do vírus a países que se pesava imune às intensas trocas globais no mundo de hoje. Foi o contexto em que, além de misteriosa, a narrativa sobre a pandemia agregou relatos de urgência, sustentada num sentimento de alerta, de emergência permanente, dominados pela imprensa ocidental, através de repetição de boletins sobre o número de casos e de óbitos, mesmo que a doença ainda continuasse sendo tratada como alguma coisa desconhecida. O jornalismo profissional dita as conversas com seu modo de tornar extraordinários os fatos, através do modelo “breaking news” de sua rotina, popularizado nas redes sociais através de postagens com imagens legendadas com a exclamação URGENTE!, grafado em letras maiúsculas, e que funciona como espasmos anunciativos para gerar frenesi emocional, cujo efeito no curto prazo é o de produzir buzz sobre uma notícia (mais comentários, mais alta intensidade emocional) e, no longo prazo, gerar um quadro de instantaneísmo tautológico sobre a pandemia (um repetição incessante do mesmo enunciado). Contudo, no complexo processo das mediações da audiência, a tautologia da urgência convivia lado a lado (quando não alimentava) a nossa negligência em desvalorizar a seriedade do tema, adicionando o surto de covid-19 ao anedotário da cultura do “entretenimento” felicista das redes sociais, dominada pelo deboche e desdém, que é a maneira como as audiências ocidentais irão revelar o seu escapismo ao tratar do tema. O desdém bem humorado foi o primeiro modo de negacionismo da doença, através de inúmeros memes e sátiras que espelhavam nossa postura de omissão frente ao desconhecido, um modo também de divertir-se com a desgraça que o destino reservara a “apenas” a China. Frente ao mistério e à ameaça, certa dose de negligência se manifestava também como humor, em posts que ressaltavam que o coronavírus havia chegado ao Brasil (daí retratavam dois trabalhadores cantando uma versão de um antigo sucesso da cantora Corona, despreocupados com a letra original em inglês), que liberava o consumo de Heineken, já que corona transmitia a doença, ou a a manifestação que Lady gaga iria acabar com o vírus em todos os continentes. O humor servia como válvula de escape para a inevitabilidade da doença, um lugar seguro para que todos pudessem administrar os seus medos. No post jornalístico mais viralizado do período de 14 a 21/1 (“Estados têm o primeiro caso de coronavírus”), a sequência de comentários pendurados na postagem corrobora com esse espírito da inevitabilidade bem humorada (com um pouco de preocupação aqui ou acolá) que animava o felicismo pré-carnavalesco: “A paz mundial através de uma pandemia”, “não bebam cerveja”, “o antivírus é a devassa”, “A gente vai morrer irra 🤠”, “deus jogando plague inc”, “Primeiro a belorizontina, agora corona kkkk gente”, “Daqui a pouco chega no Bolsonaro”.

Figura 3 — Rede de influenciadores (pontos) sobre coronavírus no período de 14 a 21 de janeiro de 2020 baseado no volume de RT (linhas) obtidos no Twitter.

Na Figura 3, mapeamos os agrupamentos (cores) de perfis que influenciaram (pontos maiores) o debate sobre surto de coronavírus no Twitter até o dia 21 de janeiro de 2020. O mapa reforça a centralidade da imprensa e de autoridades sanitárias. Isso pode ser visualizado, em primeiro lugar, através de perfis que retuitaram os nós verdes (basicamente veículos de imprensa), apoiados por um subconjunto laranja, formado por perfis de autoridades do campo da saúde, como a OPAS e OMS, que legitimavam os discursos de urgência através de boletins e plantões de notícias, em função de atividade de compilar o que ocorria na China e de estabelecer o grau de ameaça que o surto provocava no mundo. E ainda um cluster (agrupamento) azul, composto de usuários com uma identidade política mais ligada ao governo de Jair Bolsonaro reciclando e reproduzindo notícias que foram publicadas originalmente por órgãos de imprensa. O jornalista Lucas Rohan produziu vários “posts de alerta” sobre o vírus e a doença, estando em diferentes dias entre os posts mais compartilhados sobre o assunto, criando uma própria comunidade de usuários girando em torno de suas publicações (a curiosidade é que Lucas é conhecido pelo excesso de “urgente” inseridos em suas postagens), numa cobertura livestream sobre o caso, assim como foi o caso do @observint, que fez uma ótima thread resumindo o período. A seguir um pequeno apanhado de posts de alta viralização em cada um dos três agrupamentos mais centrais, então divididos por suas respectivas cores no grafo:

Cluster verde (predomínio de imprensa):

@Veja: Coronavírus na China: após casos triplicarem, o que se sabe sobre a misteriosa doença https://t.co/gA4ZU62MnG https://t.co/2gGF0Shnlw
@valor_econômico: EUA confirmam 1º caso de coronavírus no país https://t.co/xA9LGyAtFK
@Exame: OMS prevê que novo coronavírus vai se espalhar pela China e outros países https://t.co/Zo5FcGPYaK
Elpais_brasil: Doença já foi diagnosticada em Estados Unidos, Tailândia, Japão, Coreia do Sul e Taiwan, e há casos suspeitos nas Filipinas e na Austrália https://t.co/69aNnsi75p

Cluster laranja (predomínio de OMS e OPAS):

@bbcbrasil: Coronavírus na China: após casos triplicarem, o que se sabe sobre a misteriosa doença https://t.co/gA4ZU62MnG https://t.co/2gGF0Shnlw
@Opasomsbrasil: A OPAS emitiu alerta aos países das Américas sobre o novo coronavírus (#nCoV) identificado na , recomendando que profissionais de saúde tenham acesso a infos sobre a doença, saibam manejar a infecção e obter o histórico de viagem do paciente. +INFO: https://t.co/R09T0nhoEK https://t.co/tTqygFGi8V
@nacoesunidas #OPAS @pahowho fez um alerta para a região das Américas sobre um novo tipo do coronavírus nCoV, que foi detectado na #China e já se espalhou para #CoreiadoSul, #Japão e #Tailândia. O coronavírus, CoV pode causar doenças como MERS-CoV e SARS-CoV. https://t.co/JoMkK32a69 https://t.co/GSuEVzz8ZO

Cluster azul (predomínio de canais conservadores):

@renovamidia: Um novo tipo de coronavírus já deixou 6 mortos na cidade de #Wuhan, na #China, e se propaga para outras metrópoles do território, assim como para outros países da #Ásia. https://t.co/O23mJUG1Pi
@glcampos_: #URGENTE Autoridades da China confirmam 440 casos de contaminação pelo coronavírus e ao menos 9 mortos até o momento. Já há evidências de contaminação por via respiratória de pessoa para pessoa. Hoje foi confirmado o primeiro caso nos EUA, na cidade de Seattle. @conexaopolitica
@politizoficial: PRIMEIRO CASO DO CORONAVÍRUS REGISTRADO NOS ESTADOS UNIDOS… Recomendamos não entrar em pânico.

A cronologia das redes de narrativa sobre covid-19: o que diziam?

Para esmiuçar as duas narrativas, a do mistério e a da urgência, busquei identificar a cronologia vocabular da doença se formando paulatinamente, dia a dia, o que me ajudou a conhecer o principal efeito dessa cronologia: a coesão na linguagem de grupos ou temas dominantes. Na Figura 4, é possível ver quem são os grupos de perfis que vão semeando as conversas do dia 14, quando a então narrativa do mistério era mencionada apenas numa hashtag (#coronavírus), até atingir a narrativa da urgência, do dia 21, composta de 338 hashtags, revelando um crescimento na rotulação da realidade em função de mais atores de grupos sociais distintos que passam a participar das conversações.

Figura 4 — Redes temporais de influenciadores sobre coronavírus por dia (14 a 21 de janeiro) no Twitter .

Se os atores vão saindo e entrando do debate público, interessa-nos analisar as diferentes sobreposições temporais que um dado acontecimento produz nas redes sociais. E como a coesão da linguagem ocorre ou se perde nesse tempo. Sabemos que uma maio duração dessa coesão é tática fundamental para formar a opinião daqueles que estão dentro e fora da rede.

Figura 5 — Palavras mais frequentes em mensagens contendo os termos coronavírus e “corona vírus” (14 a 22/1/20).

A Figura 4 demonstra que um acontecimento é construído pelos participantes no tempo, e que determinados assuntos viram o gatilho para instar o envolvimento emocional dos seus participantes. O exemplo da pandemia demonstra que, em seu começo, a imprensa profissional e a Organização Mundial de Saúde pautaram a agenda das conversações, mantendo coeso a um vocabulário que explicitava o enigma epidemiológico da doença (Figura 5). Essa coesão lexical foi fundamental para eu pensar a ideia de uma “timeline discursiva” , um grafo de palavras visualizadas, de tempo em tempo (dia, hora, mês ou ano etc), demonstrando a concatenação de um discurso a partir de um conjunto de termos que se repete no tempo para fortalecer uma narrativa. Como desenvolvi esse método de analisar narrativas através de uma timeline discursiva?

Figura 6 — Palavras mais conectadas a ‘coronavírus’ no dia 14/01/2020 em mensagens publicadas no Twitter

A primeira etapa para modelar essa timeline discursiva é a extração do textos que servirão de corpora para o estudo. Neste caso, entre 30 de dezembro de 2019 a 22 de janeiro de 2020, extraímos todas publicações no Twitter requisitando na API da plataforma os seguintes termos: “corona vírus” e ‘coronavírus’ (como já relatado anteriormente). Em seguida, filtramos as 50 palavras mais mencionadas nessas publicações e, em seguida, identificamos as 10 palavras que mais estavam incorporadas a cada uma dessas 50. À título de ilustração, exibimos na Figura 6 e 7, os termos que estão mais incorporados ao tema em dois dias, 14/1 e 21/1/20.

Figura 7 — Palavras mais conectadas ao termo ‘coronavírus’ no dia 21/01/2020 em mensagens publicadas no Twitter.

No dia 14 (Figura 6), coronavírus está mais incorporado a termos como ‘hospitais’, ‘mundo’, ‘oms’. Já no dia 21 ( Figura 7), a correlação é outra: ‘China’, ‘surto’, ‘confirmado’. Nota-se que há uma diferença substancial na quantidade de menções aos termos, com a temperatura muito mais quente no dia 21. Demonstrando que a maior presença de atores numa rede designa maior volume de interações entre as palavras, porque elas passam a ser usadas para moldar diferentes histórias. Se “hospitais” foi mencionado 36 vezes (‘hospitais’) no dia 14, ‘China’ registrou 1.569 citações no dia 21, o que mostra a mudança de transição da ideia de localidade. Num primeiro momento, como uma visão fincado no paciente e na doença, o hospital é central. E depois, na população e na epidemia, o território chinês é o mais relevante. Quando os fatos se limitavam a um problema de saúde localizado nos hospitais de Wuhan, a politização do surto estava restrita ao questionamento sobre como as autoridades que controlam a saúde global estavam lidando para descobrir as causas focalizadas do problema. Quando o surto se torna algo que transita do dano individual para o coletivo, ativando um risco global de pandemia, é a própria China que se torna alvo das narrativas sobre a doença. De um comportamento colaborativo com os chineses, entrarão em cena as narrativas mais agressivas contra o país ao mesmo tempo que vídeos de cidadãos caindo doente nas ruas de Wuhan se multiplicam em canais oficiais de informação no Ocidente. Não à toa o governo de Pequim logo vai agir no campo de batalha semiótico, difundindo mundo à fora as imagens da população nas janelas do edifícios de Wuhan compartilhando atos de solidariedade, uma tática emocional que permite um engajamento afetivo do mundo com o país.

As redes de narrativas são os modos como palavras se entrelaçam para comunicar um posicionamento político de um agrupamento online num dado tempo. São rastros dos laços sociais entre atores em uma determinada rede (na Figura 4), são teias de significações materializadas principalmente na forma de palavras e imagens, e que podem ser visualizadas na forma de um grafo (e tantos modelos de representação visual), que calculam o grau de proximidade entre os termos para dar visibilidade à forma-rede das narrativas. Essa forma vai se metamorfoseando em dias, meses, anos, ou mesmo em horas, em função da mobilização social dos atores, sobretudo quando eles estão em choque. O comportamento estrutural das narrativas (sua forma-rede, como dizemos aqui) no tempo forma uma timeline discursiva, que visualizada, no caso da pandemia, nos permite acompanhar o corpos das narrativas, dia a dia, antes da eclosão da guerra de narrativas que tem como data de origem o dia 21 de janeiro de 2020, conforme pode ser visto na Figura 8.

Figura 8 — Timeline das Redes de narrativa a partir de mineração de textos publicados (em português) sobre coronavírus no Twitter entre 14 a 21/01/2020, quando a pandemia de narrativas sobre a covid-19 eclode no mundo.

Se a variedade dos corpos narrativos numa rede se dá em função de uma diversidade de comunidades (de palavras, por exemplo) intensamente conectadas num grafo, isso implica dizer que quanto menor é a clusterização dos nós (mais bolhas em uma rede), maior é a quantidade de corpos narrativos numa conversação, num sentido oposto, a hegemonia narrativa só pode ser alcançada com o aumento da clusterização, que se revela no modo como os atores negociam estarem juntos nas redes para evocar o mesmo conjunto semântico, batendo um bumbo vocabular, para que seu esforço gere uma coesão de palavras que centralize uma rede de narrativa. intensamente associadas. Na prática, bolhas ideológicas de atores diferentes, quando unificadas, tendem dominar a timeline discursiva. O posto disso vira câmara de eco (quando a narrativa fica limitada a um grupo).

Num olhar por contraste, entre os pontos vermelhos e verdes interconectados (ambos são palavras citadas nas mensagens sobre coronavírus), na Figura 8, é possível averiguar que o corpo narrativo (como sinônimo de rede de narrativa, aqui) é mais múltiplo no dia 21, contendo pontos de tamanho similar (no caso, a taxa de centralidade de autovetor, uma métrica de rede que mensura o quão um ponto é relevante para os outros nas redes), revelando uma força de expressão dos verdes bem distribuída ao longo das relações. Diferente das redes anteriores, que tende a uma hegemonia de determinados léxicos e grupos de léxicos verdes sobre os outros. Isso é bem representado no número de léxicos encontrados nos extremos dos dias daquela semana. A rede de narrativa do dia 14 de janeiro é formada por 75 termos e média de 7 ligações entre eles, a partir de 69 tuítes publicados por 67 usuários distintos. A do dia 21, por 530 palavras, com média de 3.9 ligações, a partir de 6.157 mensagens publicadas por 4.931 participantes.

Figura 9 — Taxa de clusterização média nas redes de narrativas sobre coronavírus (14 a 21 de janeiro de 2020)

Isso fica ainda mais evidente quando analisamos o coeficiente médio de clusterização de cada uma dessas redes temporais, entre os dias 14 a 21 de janeiro. Um maior valor desse coeficiente implica num maior número de grupos de palavras intensamente conectados. Segundo a Figura 9, as maiores taxas são dos dias 17 e 19, respectivamente, com 0.769 e 0.705; enquanto as menores são notadas no dias 20 e 21, respectivamente, de 0.443 e 0.380. Isso implica dizer que nos dias 17 e 19, há baixo número de narrativas (que pode ser porque há um número baixo de mensagens ou porque há uma hegemonia no discurso), assim as palavras tendem a estarem mais intensamente conectadas, porque o peso dos laços entre elas é grande (isso significa, na prática, que uma palavra é mais vezes escritas junto com uma outra). Por exemplo, os trios “china-coronavirus-morte”, “china-surto-wuhan” e “china-vítima-cidade” são os membros que fazem funcionar o corpo da narrativa do dia 17 (na Figura 10). Quando olhamos para o dia 21, há muito mais trios ou quartetos de palavras dentro de agrupamentos diferentes, complexificando a análise discursiva. Por exemplo, ao observamos o grafo do dia 21/1 na Figura 10 “china-CN-coronavírus” e “estados-unidos-eua-washington” polarizam e aglutinam uma rede de cornucópia de palavras, revelando que um novo território passou a ser objeto da atenção da audiência no Twitter (no caso, os Estados Unidos). E mais: que termos epidemiológicos e jornalísticos, como as palavra ‘confirmados’, ‘atenção’, ‘urgente’, ‘doença’, foram removidos do interior do agrupamento originário (China), posicionando-se na intersecção entre essas duas partes da rede, ao mesmo tempo que outras singularizam cada parte do pólo narrativo. ‘Mortes’, ‘surto’, casos’, ‘causou’ no pólo chinês. ‘Infecção’, ‘infectou’, transmitida’, ‘homem’, no pólo norte-americano. Ambos reproduzem certa predileção pela narrativa da simultaneidade dos fatos, ou seja, pelos registros dos contágios territoriais que o vírus alcançava, estando ainda muito longe de um vocabulário mais pronunciativo, em que os argumentos mais ideologizados ganham mais relevância do que notícias neutras no corpo das redes de narrativas sobre a doença.

Da timeline monotemática para a pluritemática

O método da timeline discursiva, rastreando o corpo das redes de narrativa, nos permitiu demonstrar que uma verdade consensuada sobre um determinado acontecimento se estabiliza através de uma repetição sucessiva de um mesmo vocabulário, revelando uma monotematização da timeline (uma mesmo agrupamento de palavras se repetindo no tempo). Aos analisar as teias semânticas sobre coronavírus até o dia 20 de janeiro, notamos baixa variação vocabular sobre o evento e uma repetição de termos nesses dias, o que permite que um dado universo vocabular domine os comentários sobre um determinado assunto (no caso, a doença e o vírus), estabilizando o seu sentido (neste caso, o de urgência no registro do contágio) entre as audiências. Até o dia 20, então, a covid-19 resume-se a um surto de uma doença respiratória na China, ainda misteriosa, com impactos em alguns países asiáticos, denotando um potencial de alarme para prevenção global contra o vírus, como se pode notar no sequenciamento das redes de palavras em três dias diferentes, segundo a Figura 10.

Figura 10 — Desigual centralidade de nós e baixa variação de termos entre os dias 14 a 20, tendo como exemplo três momentos da pandemia (15, 17 e 20 de janeiro)

Mas, ao comparar o dia 21 com aqueles que o antecedem (14 a 20), há uma evidente virada da narrativa, revelada pela pluritematização da timeline — um salto qualitativo em termos de variedade de entidades lexicais, explicado pela existência de múltiplos contextos discursivos, conforme pode se notar na Figura 11. O dia 14 é quando se circula no Twitter que o coronavírus é a causa da “doença misteriosa” em Wuhan, fazendo com que haja uma centralidade de termos como ‘OMS’, ‘vírus’, ‘coronavírus’, ‘hospitais’, ‘infectadas, que expressa uma monotematização: o alerta da OMS sobre o novo coronavírus, com viés de incógnita, mistério, dúvida, que ressoa entre os poucos mais de 60 perfis que conversam sobre o tema.

Figura 10— Timeline das Redes de narrativa a partir de mineração de textos publicados (em português) sobre coronavírus no Twitter 14 e 21/01/2020 (errata: onde se vê 20 jan 2020, leia-se: 21 jan 2020)

Já, no dia 21 de janeiro, quando o primeiro caso de coronavírus é reportado nos EUA, a virada narrativa ocorre trazendo novos léxicos epidemiológicos (mais alarmista, mais realçados), como por exemplo: ‘altamente’, ‘transmitido’, ‘contagioso’, ‘confirma’, ‘casos’, ‘espalha’. Mas o que fará com que esses termos ganhem força de virada é o deslocamento de eixo territorial da epidemia, da China para os EUA. É nesse momento que a narrativa da urgência ganha mais relevância. Será uma narrativa que começará com dois motes, o informacional, direcionado a territorializar a doença através de termos como ‘Japão’, ‘China’, ‘ EUA’, ‘Estados Unidos’, ‘ Tailândia’, ‘Washington’, ‘países’, ‘coreia’, ‘ásia’ etc; e o emocional, que terá função de expressar sentimentos de medo e risco, ativando vocábulos ligados a perigo, como ‘urgente’, doença’, ‘infecção’, ‘emergência’, ‘alerta’, ‘atenção’, ‘extinção’, ‘mortes’. Os temas vão se multiplicando, fazendo da timeline discursiva um espaço onde podemos verificar várias subredes de narrativas, o que é típico de um contexto de disputas de sentidos que veremos multiplicar.

Essa narrativa mais territorializada logo começará a dirigir condutas fora das redes sociais, quando, na Europa e Estados Unidos, diversas pessoas de família asiática são associadas a alguém que punha em “risco” à saúde de outros, desencadeando perseguições nas ruas e discursos inflamados em mídia social. No Brasil, em meses seguintes, o rescaldo dessa narrativa fará a a família Bolsonaro chamar o coronavírus de “vírus chinês”; nos EUA, Trump chamará a doença de “kung flu”, por analogia a kung fu, a luta marcial que vem da Ásia; e flu (gripe, em inglês), ao mesmo tempo que o risco real era negligenciado por essas e outras lideranças políticas.

a incerteza e o vírus: próximos passos

Desse período, o que podemos concluir é que viver a incerteza é a base emocional comum que pauta o comportamento de quem se informava e conversava nas redes sociais sobre as características e os impactos da covid-19.

Há inúmeras nuances para demonstrar a partir do dia 21 de janeiro, a data que inaugura a pandemia de covid-19 como fenômeno digital. Nesse ensaio, rascunhamos um caminho teórico (é preciso falar de Narrativas como regime de verdade nas redes sociais), experimentamos uma perspectiva metodológica (apreender o social no digital através da verificação das redes de narrativa que formam o corpo de uma timeline discursiva, mono ou pluritemática) e investigamos os relatos da história do tempo real sobre a doença, entre os dias 14 a 21 de janeiro.

A incerteza foi tanto o fator básico de questionamento frente ao controverso, compartilhado através de conversas que investem na ciência como atividade fundamental para domar o surto epidêmico, quanto,, em sentido contrário, a base para negá-la. A presença diária dos gráficos com as curvas e retas epidemiológicas mostra como nosso imaginário social passaria a lidar com uma ingestão diária de um novo vocabulário, presentes em termos como ‘achatar a curva’, ‘distanciamento social’, ‘lockdown’, ‘isolamento’, ‘taxa de transmissão’, ‘quarentena’ etc. Contudo, abrir-se-ão também redes de narrativas moldadas para confundir, para aprofundar o regime de incerteza da pandemia, uma vez que várias dessas narrativas partirão de informações precárias em termos científicos (especialmente, quando o assunto se torna a “cura” da ou prevenção contra a doença), no rol estão as disputas negacionistas que giram em torno do uso de máscaras, de fármacos como cloroquina e ivermectina, do vírus “fabricado” em laboratório pela China, a ideia de “isolamento horizontal”, de “mortes de CNPJ” e assim por diante.

Agora, vamos continuar cartografando as inúmeras incertezas que nos atravessam. A tarefa é complexa. Veja, por exemplo, como o discurso científico passou a ser absorvido de modo ambíguo por distintas instituições e pessoas, que, inúmeras vezes, destitui o próprio significado da ciência em prol de seus interesses comerciais ou políticos. Exemplo: logo quando da decretação da quarentena, no final de março de 2020, os governadores justificavam suas ações dizendo em uníssono: “estamos seguindo as determinações da Organização Mundial de Saúde (OMS)”. É interessante notar como a OMS — quem dispara o tom maior da pequena conversação do dia 14 de janeiro — se tornou uma chave para certa controvérsia no Brasil, mesmo tendo, desde início, aparecido como um ator legitimador da verdade, isto é, o menos controverso de todos. Assim, em condições normais de temperatura e pressão, o mantra “seguindo a OMS” sequer seria necessário de ser enfatizado em falas políticas que combatem epidemias, porém, a OMS se transformou-se em símbolo de uma identidade filiada a uma narrativa oposicionista aos posicionamentos de Jair Bolsonaro, presidente brasileiro que é um reconhecido detrator da ciência (corte de gastos na ciência, prescrição de remédio sem efeito sobre a covid etc). Mas, com o tempo (isso significa, conforme os atores se entrelaçaram em novas relações de narratividade), o mantra “estamos seguindo a OMS”, que expressava uma mensagem de responsabilidade pela proteção da vida, se transformaria em recurso retórico para que essas mesmas falas políticas antibolsonaristas tivessem uma base científica para afrouxar as medidas de distanciamento social pregadas pela OMS, beneficiando grupos econômicos, ampliando o número de óbitos, mas sem que a imagem de tecnicidade fosse destituída dessas falas políticas dos governadores, demonstrando, assim, que a ciência, como qualquer outro campo social, é determinada pelos movimentos da política, e não o contrário.

O vírus e a viralização online. Seguimos a nossa tarefa de relatar e mapear histórias cotidianas do tempo real. Nosso futuro trabalho é demonstrar como a timeline das redes de narrativas nos ajuda a revelar o narrativismo, a maneiro como propagandistas do negacionismo ganharam as redes sociais, em especial, no dia 28 de janeiro de 2020.

--

--

Fabio Malini
Fabio Malini

Written by Fabio Malini

Professor do Departamento de Comunicação Social Ufes/Brasil. Pesquiso ciência de dados, política e redes sociais.