O vírus e o negacionismo: o sentimento anti-China na origem do discurso negacionista sobre covid-19

Fabio Malini
31 min readAug 5, 2020

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O verão de 2020 estava ainda no começo, quando a quantidade de postagens em português no Twitter sobre coronavírus atingia um novo pico: 153.012 tuítes, entre os dias 22 a 28 de janeiro. Era um número 15 vezes maior que as semanas anteriores, quando o tema aglutinou 10.623 postagens. A diferença quantitativa indicava maior atenção dedicada à crise sanitária chinesa, sem dúvida. Mas isso não é o mais relevante. A principal descoberta do período é a ascendência de uma frente negacionista nas conversações sobre a propagação do coronavírus no Brasil.

Como identificá-la? Ao comparar a rede de compartilhamentos (RTs) gerados pelos usuários que participam das discussões no Twitter — representados pelos dois grafos correspondentes aos períodos (Imagem 1) — , é possível observar a formação de várias bolhas (representadas através de cores diferentes) compostas por pontos (perfis) que se diferenciam, em tamanho, em decorrência da popularidade de suas mensagens. O primeiro fenômeno revela homofilia entre os participantes (os mesmos interesses em comum criam comunidades de partilha mútua), cujo efeito colateral é de torná-los mais isolados da diversidade de subtemas que circulam pela plataforma. O segundo — a popularidade — demarca como participantes conquistam uma fama entre determinada audiência a partir de linguajar próprio para enquadrar e interpretar os sentidos de um acontecimento (mesmo que a influência, em alguns casos, dure por pouco tempo).

Imagem 01 — Comparação de grafos retratando redes formadas a partir de retuítes com os termos “corona vírus” e coronavírus. O primeiro cobre os dias 14 a 21 de janeiro de 2020. O segundo, 22 a 28 de janeiro de 2020.

Na Imagem 01, é simples notar que as relações se adensaram de um tempo para o outro, ao comparamos o primeiro com o segundo grafo. Há mais linhas (RTs) conectando os nós no grafo à direita, o que implica dizer que os laços entre os participantes ficaram mais fortalecidos, desencadeando uma coesão social mais solidificada, que é percebida na geração de grupos diferentes, fragmentados numa teia de relações que abriga diferentes “mundos pequenos” a viralizar os seus respectivos pontos de vistas sobre tantos fatos trazidos pela pandemia. A rede negacionista emerge entre os dias 22 a 28 de janeiro trazendo consigo todo seu pelotão desses influenciadores. Mas não era ela que tinha o controle dos fluxos informativos sobre o coronavírus. Este era dominado pelos veículos da chamada imprensa tradicional (em contraponto àquela formada no ambiente digital).

É rápido notar a centralidade da jornalismo profissional em ambos momentos. Mas é no segundo grafo que o posicionamento da imprensa (predominante no agrupamento amarelo) traz um valor adicional para análise de sua rede. Ela é atraída e replicada por uma audiência mais ligada a um pensamento social-liberal, com viés oposicionista ao atual governo de Jair Bolsonaro. Ali estão, por exemplo, Guga Chacra, El Pais Brasil, Brasil 247, Carta Capital e tantos outros (predominantemente, jornalistas e articulistas, na rede rosa). Essa confluência social-liberal tenderá a se repetir no decorrer dos fatos acerca da covid-19 no Brasil, por questões lógicas: os críticos do governo Bolsonaro tendem a replicar mais material da imprensa profissional, especializada na fiscalização e denúncia de diferentes instâncias do poder constituído. E também porque o Twitter possui um viés mais liberal (na perspectiva dos costumes) nesses tempos de covid. Por isso que esses dois agrupamentos tenderão a caminhar lado a lado, ativados por suas audiências homofílicas que tendem a repercutir ambas subredes (clusters), em função das semelhanças temáticas na cobertura sobre os impactos negativos provocados pela atuação do governo brasileiro— neste caso — na gestão da pandemia.

A narratividade da imprensa seguia acentuando o mote das semanas anteriores, focada na divulgação dos números decasos e mortes, valorizando assim manchetes que apelavam para a urgência e o alerta, ainda que já ali aparecessem os primeiros relatos mais detalhados sobre os modos de transmissão do vírus e o comportamento humano para evitá-lo. Num olhar mais panorâmico das notícias do período, podia-se ler a Band Jornalismo contando o número de mortes em Wuhan, enquanto outros jornais veiculavam a confirmação de casos em outros países, como a Alemanha e França, e o aumento da propagação do vírus nos EUA, já com cinco casos confirmados. O G1 registrava o termo epidemia, no lugar de surto, ao divulgar que o ano novo festivo chinês havia sido cancelado por causa da epidemia de coronavírus. E, a partir do dia 28 de janeiro, surgem os primeiros relatos de brasileiros solicitando ao governo Bolsonaro que fizessem como muitos outros países: evacuasse seus cidadãos da China.

No entanto, neste momento, a força enunciativa da imprensa não derivava apenas da capacidade dela registrar o fluxo de casos e mortes durante a pandemia, mas principalmente porque ela era a fiadora das verdades que embasavam as narrativas pró ou anti China, animando a opinião público online no período.

A imprensa como primeira camada do narrativismo

Um olhar atento às notícias mais viralizadas nos ajuda a entender como a fabricação de mensagens persuasivas em rede (o narrativismo) depende de uma proto-cooperação com a imprensa, por esta criar contextos e destacar personagens e fatos, que serão parasitadas e replicadas para que coletivos no poder montem narrativas para orientar as condutas de uma parcela majoritária da opinião pública. O narrativismo, portanto, é a fabricação e viralização sincronizada de ações e relatos propagandísticos, veiculados em sites de notícias próprios, para agitar e dar direção à agenda das conversações públicas .

O primeiro contexto, o da emergência, fomentado pela imprensa (incluindo a internacional) desencadeou a montagem da narrativa de “governo vigilante”, o narrativismo do governo Bolsonaro para servir de resposta à alta carga viral alcançada pelo anúncio de “alerta elevado” de risco internacional do coronavírus decretado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A notícia do G1 (a mais compartilhada sobre o assunto) foi largamente disseminada em 38 páginas de redes pró Bolsonaro no Facebook. Na maior parte delas, uma mesma mensagem, publicada pelo mesmo usuário, pedia calma e solicitava a palavra do ministro da saúde.

O impacto imediato do anúncio no Brasil foi a convocação da primeira entrevista coletiva pelo Ministério da Saúde transmitida ao vivo pelas redes sociais. O então ministro da saúde, Henrique Mandetta, garantia que o Brasil não registrava nenhum caso da doença, acalmando possíveis turistas, ao reforçar que haveria vigilância dos aeroportos, durante o período de Carnaval. O MS, com isso, sinalizava que o vírus, ao desembarcar no Brasil, chegaria pelos aeroportos ou portos. Isso ocorria no dia 28 de janeiro, quando o presidente da república foi notificado do alerta da OMS, segundo o próprio ministro. Não à toa, antes restrita à atuação do MS, novas áreas do governo começaram a integrar-se à narrativa de “governo vigilante” contra o coronavírus, em especial o Ministério da Infraestrutura, que tentava passar uma imagem que estaria a realizar ações nos aeroportos e portos, auxiliado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Todavia, longe da narrativa governamental, o jornal O Globo destacava, ao contrário, que os passageiros que chegavam da Ásia não passavam por nenhum tipo checagem sanitária. Já o Diário de Pernambuco e o Dia reportavam que a inspeção em todas aeronaves provenientes da China não estava a ocorrer. No mundo pré-moldado da “narrativa vigilante” a Anvisa declarava que a sua principal ação era a leitura de avisos através de alto-falantes dos aeroportos. Questionado sobre o avanço da doença no mundo, em viagem a Índia, o presidente Jair Bolsonaro reagiu com o seu jeito descolado da realidade: “Não é uma situação alarmante”, dizia no dia 26 de janeiro.

O segundo contexto ativou mais um estado de descrédito em relação ao Brasil do que narrativas propriamente ditas. Descrédito resultante do anúncio do primeiro caso suspeito de coronavírus no Brasil. Era uma paciente que havia voltado de Wuhan e internada em Minas Gerais por problemas respiratórios . No Facebook, o link da matéria da Veja produziu 315.412 interações em 230 páginas diferentes, segundo o CrowdTangle. O tema foi notícia praticamente em todos veículos (na tevê ganhou reportagem especial do Jornal Nacional), gerando uma mistura de apreensão e sarcasmo. Apreensão porque disparou uma corrida por questionamentos junto ao Ministério da Saúde, que, até por isso, passou a fazer uma cobertura mais ativa em seus canais de redes sociais sobre o coronavírus, confirmando, em seguida, que a pessoa havia sido hospitalizada mas as equipes de saúde descartavam a suspeita de covid-19. Sarcasmo, porque o comportamento dos usuários foi de disparar um deboche coletivo para demonstrar o despreparo do Brasil em lidar com uma pandemia, numa espécie de masoquismo por antecipação, sustentada em gifs e textos expressando diferentes sentimentos de medo, tais como: “Aqui no Rio ou a gente vai morrer por causa da água ou por causa desse vírus aí.” “E com a agilidade do governo em resolver as catástrofes, vamos todos morrer aqui em Minas”, ironizavam. Basicamente as pessoas nutriam um discurso de abandono do Estado, como se elas apostassem numa governança caótica da doença pelo país, sobretudo em Minas Gerais, estado onde a negligência estatal fez parte das causas de dois grandes desastres sócio-ambientais recentes, em Mariana e Brumadinho.

O descrédito com a política no Brasil será ainda mais avivado em função do narrativismo pró-China que emerge de uma reportagem viralizada por O Globo, mostrando a construção de um hospital de mil leitos em cinco dias na China. Era a segunda notícia da imprensa mais compartilhada, no Twitter, no período. E foi também veiculada pelo G1, GloboNews, Folha, Rohan, Haddad Debochado, Brasil 247. O sentimento positivo em prol da eficiência chinesa contagiou também as conversações no Facebook, gerando 633 mil interações através de 1570 posts publicados em 1569 páginas da plataforma, puxada pela alta quantidade de compartilhamentos de post do G1 (20 mil), O Globo (15 mil) e Jornal de Notícias (10 mil), segundo dados extraídos do sistema de monitoramento oficial do Facebook, o CrowdTangle.

A China então passa a ser mostrada como um país agindo rápido para proteger a sua população: hospitais, quarentena forçada, bloqueios de estrada, treinamento de equipe de saúde, ciência de ponta. Esse narrativismo foi pautado pela confluência social-liberal das redes, que emitia dupla mensagem, a que reforçava a eficiência chinesa e a que se engajava a uma crítica à administração Bolsonaro, vista como inepta e desgovernada (à época, com grande repercussão nas redes, porque o governo acumulava erros na veiculação das notas do Enem). O espectro geral nesses agrupamentos era de ode à eficiência chinesa, exaltada, em contraste, também nos comentários de perfis ligados à frente “social” (rosa) dessa confluência em rede: “A China está construindo um hospital com mil leitos em DUAS SEMANAS para ajudar no tratamento das vítimas do coronavírus. Parece as obras do Metrô de São Paulo”, escrevia @delucca.

Do outro lado, o sentimento anti-chinês ganhou viralização por um dos maiores erros da cobertura jornalística sobre covid-19: a história da sopa de morcego que, consumida por chineses, teria sido a causa da transmissão do coronavírus para os humanos. Originalmente a matéria foi publicada no blog do jornal Extra Page Not Found, sendo tuitada com uma fotografia de um morcego servido dentro de um caldo, com os seguintes dizeres: “Sopa de morcego pode ter disseminado coronavírus na China”.

A história serviu de template para uma variada gama de discursos xenófobos contra a população asiática, com acusações de culpa por manter “hábitos gastronômicos estranhos”. No Twitter, o tuíte do Extra foi partilhado diretamente por mais de 13 mil perfis. E indiretamente, em apenas um retuíte comentado, recebeu 20 mil compartilhamentos e 70 mil curtidas de perfis diferentes.

No Facebook, de acordo com o CrowdTangle, a história produziu 466.791 interações ativas (curtidas, compartilhamentos ou comentários) em 712 posts de 331 páginas ou grupos (Imagem 2). O link da matéria do Extra se espalhou no Facebook graças a ação de mais de 92 mil compartilhamentos, 337 mil likes e 158 mil comentários, um sucesso de público e crítica, não apenas na página do Facebook do jornal Extra, mas encadeado em outras do metiê do jornalismo profissional, cujos links estão todos disponíveis ainda na plataforma, como se pode lê no “facebook” do Portal R7 (post com 26 mil compartilhamentos), Veja (14 mil), Jovem Pam News (4.9 mil), History (1.6 mil), Gazeta ES (1.1 mil), Pleno.News (2 mil), O Tempo (782), Metrópoles (573), O Povo Online (337), Veja Saúde (704), Rede TV! (286), Jornal do Commercio (188), O Popular (137), Portal Rede Amazônia. A julgar pelas audiências locais desses veículos, a sopa de morcego viralizou sem discriminar qualquer sotaque brasileiro, auxiliada também por páginas de nicho ou nas mais focadas em reciclar notícias publicadas pela imprensa, neste caso, para ficar apenas nas que o post teve bastante popularidade: Índia Capitalista, Direitos dos Animais, Siala Abreu, Medgujorge Brasil, Parasitas do Brasil, Conexão Política, Revista Fórum , Fofinhos contra o Brasil. Sobrou até para o Divino misericordioso, como pode ser lido no post da Igreja Adventista, que pregava um sermão contra aqueles que não percebem como Deus nos deu alimento o suficiente sem a necessidade de nos perder numa culinária mundana: “Esta situação nos leva novamente à reflexão sobre a importância de escolher corretamente o que devemos comer. Deus, nosso Criador, concedeu os melhores alimentos para a nutrição do nosso corpo conforme descrito no livro de Gênesis.”, destacava.

IMAGEM X
Imagem 2 — Post de maior alcance no Facebook que publicaram a história falsa sobre a “sopa de Morcego” em Wuhan

O dado importante residia num pequeno trecho na parte final do texto do blog do Extra, assim redigido: “Não houve verificação oficial [dessa história]”. Ou seja, a história da sopa de morcego era apenas um rumor sem confirmação jornalística alguma.

O G1, que verificou a história, reportou uma outra: a tal sopa do morcego era algo nunca visto por brasileiros que moravam em Wuhan. Contudo, esta não alcançou a mesma popularidade do que o hoax no Twittiter, obtendo apenas 5 likes. Nenhum compartilhamento. No Facebook, 75 compartilhamentos, 687 curtidas e 312 comentários.

Um tempo depois, o Ministério da Saúde do Brasil enquadrou a história da sopa como fake news. E verificadores independentes — contratados pelo Facebook — enquadraram a matéria como informação falsa, como pode ser visto na página oficial do veículo jornalístico Jovem Pam News (com quase 5 mil compartilhamentos). Era rotulada como Falsa porque a imagem da sopa era um print de um frame de vídeo criado pela influenciadora digital Mengyum Wang, quando ela esteve em Palau, arquipélago no Pacífico, apresentando hábitos da população, portanto, nada a ver com Wuhan, a cidade chinesa por onde o surto principia. Wang acabou por excluir o vídeo, gravado em 2016.

Esse nexo causal entre a sopa do morcego e o coronavírus foi sustentado num discurso verossímil por veículos de imprensa, que citavam um estudo demonstrando que a covid era uma zoonose. De fato, a zoonose está embasada em um estudo escrito por Wei Ji et al, publicado no Journal of Medical Virology. Os autores sustentam que o surto em Wuhan estaria associado ao histórico de exposição de trabalhadores e frequentadores do mercado da cidade aos diferentes tipos de animais silvestres, já que muitos destes carregam o vírus. Contudo, ainda que várias análises genéticas demonstrassem a presença do coronavírus nestes animais, a correlação do vírus da covid-19 com o morcego foi descartada. Curiosamente, esse estudo foi repercutido também no G1 quase uma hora antes da nota no Page Not Found. Mas, no Twitter, esse post do G1 só obteve 1 compartilhamento. No Facebook, 1.719. Assim, o jornalismo científico acabou sendo eclipsado pelo ímpeto negacionista cuja gênese foi emanada da grotesca história da sopa de morcego.

Somente os cinco primeiros veículos que mais espalharam o “fato não verificado” somam 71 milhões de seguidores no Facebook. Óbvio que há nesse número aqueles que seguem pelo menos duas dessas páginas; óbvio que há a limitação algorítmica do Facebook que só deixa o alcance se tornar orgânico (atingir 71 milhões) quando os donos das páginas pagam por impulsonar seus posts. Mas óbvio também é o fato de que tantas outros canais populares no Facebook reciclaram essa mesma desinformação (segundo o Crowdtangle, 718 páginas), repassando-a para seus públicos.

Imagem 3 — Gráfico com acúmulo de compartilhamentos no Facebook de postagem do jornal Extra sobre a história falsa da sopa de morcego em Wuhan.

Em síntese, uma longa onda de viralização em volta da “notícia” durou, de modo intenso, pelo menos durante duas semanas. Segundo os dados do CrowdTangle, o crescimento do compartilhamento direto da página do Extra apresentou uma subida contínua, conforme pode ser visto na Imagem 3, chegando no dia 12 de fevereiro, com um acumulado de 74.021 compartilhamentos. Soma-se a esse número mais outros 19 mil partilhas feitas indiretamente por perfis que não seguem a página do Extra, simplesmente, porque leram a notícia, copiaram o link de onde ela foi publicada e compartilharam-na em suas respectivas timelines, demonstrando a dispersão do boato através de um efeito de manada — um comportamento humano, na rede, caracterizado por participar daquilo que é o assunto do momento nas redes sociais, demonstrando um viés pelo momento na escolha daquilo que partilha em seus perfis. A julgar pelo segundo post mais viral, divulgado pelo Portal R7, a desinformação se estendeu também a outras plataformas monitoradas pelo CrowdTangle. Além de alcançar 53 mil compartilhamentos no Facebook — metade disso efeito da manada de replicadores, a outra, 26 mil, por seguidores do portal -, o assunto atingiu 9.3 mil interações no Instagram citando apenas esse link do R7.

Imagem 4 — Lista dos memes mais recentes e com maior volume de compartilhamentos no Facebook acerca da história falsa da sopa de morcego em Wuhan.

A história grotesca da sopa do morcego não pode ser enquadrada numa história desenvolvida a partir de um discurso que narra (observa abertamente o mundo e o reporta), mas de um discurso que narratiza a realidade por fingir fazer o mundo falar por si mesmo (White, 1980). Assim, a verdade na sopa estava mais em quem a enunciava do que no enunciado em si, ao revelar o punhado de racismo que carregava. Num terreno de incerteza informativa no qual se assenta o surto de covid-19, os “fatos não-verificados” serviram de trampolim memético para o forte viés xenófobo que se espalhava a partir daquele momento, não à toa a campanha #IamNotaVirus (Eu não sou um vírus) logo foi lançada para expôr como a população de origem asiática estava a sofrer danos físicos por consequência de perseguições que sofriam nas ruas, lojas e meios de transporte público e nas redes sociais do mundo ocidental.

No Brasil, como se vê nos memes mais recentes da Imagem 4, a história continua. Em abril, a história aparecia em post de humor. Em maio, enquanto um usuário ainda denunciava a dimensão racista da história, um outro, youtuber, exclamava em tom de deboche: “maldita sopa de morcego”, agregando comentários racistas nos replies. Em junho, entre tantas publicações, servia para crítica política bolsonarista ao governador João Dória. Em julho, era viralizada como objeto memético do humor gamer.

Na genealogia das narrativas em torno da covid-19, a imprensa foi o ator institucional que oficializou o primeiro hoax , ajudando a desencadear a propagação de uma narrativa xenófoba, que foi distribuída por estruturas informacionais baseadas em amizade e cumplicidade que o consumo de mensagens em plataformas digitais está subordinado e que funciona entrelaçando seus participantes em pequenos coletivos digitais baseados laços sociais fracos de convivência (grupos de Whatsapp, de Instagram, Messenger, Facebook, de hashtags etc). A imprensa, ao transmitir uma história de aberração (a sopa de morcego) como isca para o clique em seus links, acabou por fazer destes o gatilho para o comportamento de auto-proteção comunitária que esses micro coletivos permanentemente ativam, quando repassavam essa informação para reforçar o “bem-estar” futuro dos seus membros. Enfim, tudo isso se mostrou importante por revelar que a primeira camada de rede envolvida na concepção do narrativismo são atores institucionais com legitimidade para autenticar a veracidade dos fatos. Qualquer história sem a chancela destes será etiquetada como irreal, ainda que ela possa vir a funcionar como narrativas de reforço de crenças numa bolha ideológica mais fechada em certa mídia social. Como discuti em ensaio anterior, a “A narrativa é a verdade para o acontecimento, partilhada para reforçar o sistema de crenças de um coletivo em posições de poder”.

O comportamento negacionista e a rede do governismo bolsonarista

Imagem 5 — Rede de influenciadores (pontos) sobre coronavírus no período de 22 a 28 de janeiro de 2020 baseado no volume de RT (linhas) obtidos no Twitter. Uma pequena observação: há no grafo uma subrede vermelha que representar torcedores do Porto (time de futebol português). Estão presentes em função de comentários sobre um jogador chamado Corona. Pedimos Desculpas pela ambiguidade.

Certo é que a repetição contínua da notícia fez disparar uma sentimento anti-China nas redes e, para nenhum dos grupos disputando as narrativas sobre a pandemia, a “sopa de morcego” teve tanta utilidade quanto para a rede de apoio ao governo de Jair Bolsonaro, os chamados bolsonaristas, que consideravam o “surto de Wuhan” mais um plano da China para dominar a economia do mundo. A história da sopa de morcego não foi apropriada apenas como uma informação bizarra para ganhar visibilidade online, mas principalmente como uma base factual para auxiliar uma verdade política ser partilhada entre quem comungava do mesmo viés político do governo brasileiro. A sopa ganhou fôlego em um dos principais meios da propaganda bolsonarista, o site Conexão Política. Com um jeito próprio, ele reciclou o material do jornal Extra, mantendo o mesmos traços de incorreção do título original: “Sopa de morcego pode ter relação com surto de coronavírus na China https://t.co/6t2qV1li89. Resultado: a mensagem alcançou 2.6 mil compartilhamentos no Twitter; no Facebook, 660. No corpo do texto também se reproduzia, em seus últimos parágrafos, o mesmo problema da edição do Page Not Found:

“Imagens [da sopa] não confirmadas e postadas nas mídias sociais”.

A entrada em cena do agrupamento governista está ligada, primeiro, às primeiras pressões sofridas por Bolsonaro para dar respostas concretas ao alerta de risco internacional de coronavírus decretado pela OMS; depois, para resgatar famílias de brasileiros no epicentro da doença, na Ásia. Antes restritas aos agrupamentos mais noticiosos (primeiro grafo da Imagem 1), as conversações sobre coronavírus passaram ter a presença massificada e permanente de perfis implicados na defesa do governo(grupo marrom no grafo à direita na Imagem 1). A proteção do bolsonarismo tinha um viés bem definido: negar tanto a gravidade dos fatos anunciados pela OMS, quanto a eficiência do governo chinês na condução da crise sanitária. O pelotão negacionista era distribuído em quatro frentes: as fontes oficiais, os narrativistas, os diários da propaganda oficial e uma massa de comentariado. A Imagem 6 permite-nos visualizar essa estrutura com mais nitidez: trata-se dessas três frentes (a subrede de cor marrom na Imagem 5) representadas de modo mais detalhado. É claro que perfis mais institucionais, como o Ministério da Saúde, estão presentes no agrupamentos em função tanto da marca governista dessa rede, quanto para servirem de voz oficial, legitimando os discursos do grupo.

Image 6 — SubRede de RTs acerca do tema coronavírus formada de influenciadores e comentaristas de defesa do governo Bolsonaro (22 a 28 de janeiro de 2020)

Os pontos maiores no grafo (Imagem 6) revelam os participantes que mais obtiveram difusão de suas mensagens. Nessa classe de influenciadores digitais há dois tipos. Aquele que publica pouco e obtém muito relevância. E aquele que publica muito e obtém uma quantidade média de interações em suas mensagens.

Tabela 1 — Narrativistas do negacionismo

No agrupamento governista (marrom na Imagem 5), a conta @bernardopkuster é o exemplo do primeiro tipo. Fez apenas um tuíte, obteve 11 mil curtidas, 1.6 mil compartilhamentos sobre coronavírus no período de 22 a 28 de março. Na segunda situação, destaca-se a conta @conexaopolitica, que, no mesmo período, postou 20 vezes sobre o assunto, obtendo neles cerca de 16 mil curtidas e compartilhamentos. Os de primeiro tipos são os Narrativistas (Tabela 1), figuras públicas que com suas declarações estimulam o grupo a se auto-organizar rapidamente através de narrativas por eles puxadas. Os Narrativistas dão início ao contágio em seus grupos, mas não conseguem manter a mobilização sobre um assunto por um longo período de tempo, sob pena de gerar resistência ao conteúdo viralizado (geralmente, as audiências ficam saturadas) e produzir o efeito “câmara de eco”, o chamado “falar para nós mesmos”.

Tabela 2 — Diários oficiais do negacionismo

Já os influenciadores de segundo tipo estão predominantemente os blogs bolsonaristas, que geram mais efeitos de longo prazo através da publicação de uma maior quantidade de informação por dia para que suas audiências leiam o noticiário através do viés governista e não pelo enfoque da imprensa profissional. Contas como @conexaopolitica, @politzoficial, @renovamidia, @glcampos_, @terca_livre, @digital_explora, @rev_9999, @fujiwaracarol , @knalquestionese e @agoranoticiasbr formam os diários associados do governo (Tabela 2)que reivindicam um status de canais pretensamente jornalísticos, mas que apenas são responsáveis por propagar pautas e comentários que reforçam as histórias montadas pelos narrativistas do governo.

No caso do coronavírus, esses perfis transformam as crenças internas à narrativa governista num formato de notícia factual, autenticando-a como se ela fosse acontecimentos verificado, sem a responsabilidade de checagem ou de inserção de pluralidade de fontes contraditórias. Funcionam como uma “diário oficial”, mitigando que a audiência governista compartilhe o material mais anunciativo da imprensa profissional (mais crítica ao governo) ao mesmo tempo que, obtendo para si esse público, pode vendê-los como commodities a serviços de publicidade baseadas em mídia programada (como Google Adsense), faturando com uma audiência partidarizada. Dentre os 20 posts do @conexaopolitica sobre coronavírus, por exemplo, há uma misto de anúncios factuais (ex, “URGENTE: China confirma 4.515 casos de Coronavírus”), copiado de reportagens da apuração divulgada nos principais jornais do país; e relatos de fatos não verificados, servindo como “deixas” para que a audiência da bolha ideológica reforce suas crenças através de comentários e compartilhamentos comentados. Saiu dos “diários oficiais”, por exemplo, a divulgação de que o coronavírus era uma arma biológica produzida em laboratório chinês, circulada pelo site @PolitzOficial no dia 28, mas que, um dia antes, aparecera como um post mais “noticiado” também no Conexão Política: “China construiu laboratório para estudar SARS e Ebola perto do epicentro do surto do vírus corona. EUA alertaram em 2017 que o vírus poderia “escapar”.

Tabela 3 — Comentariado do negacionismo

Completa o ecossistema os perfis que formam o comentariado negacionista (Tabela 3), vulgarmente chamados de “robozada”, por servirem como replicadores passivos (baixa resistência em repassar pra frente conteúdos partidarizados) e militantes ativos na conversação (ocupando as caixas de comentários para reforçar crenças bolsonaristas e não dar espaço para que seus adversários dominem a repercussão de um acontecimento). Replicam e comentam muito, mas não conseguem desencadear múltiplas cadeias de contágios (novos compartilhamentos), dada a sua baixa relevância na rede. As funções primordiais do comentariado é criar um senso de maioria nas discussões sobre qualquer assunto, ganhar mídia espontânea na imprensa profissional e entre celebridades com as campanhas que mobilizam e fazer agitação que dividam as pessoas a ponto de elas não conseguirem mais se localizar no emaranhado de controvérsias que essa base militante produziu.

Se tomarmos como exemplo o participante @marcelodemarco2, ele gerou 133 posts, todos foram retuítes (compartilhamentos de mensagens) de mensagens criadas por outros 14 usuários. A segunda participante com maior atividade informativa, @n_carvalheira, produziu 121 postagens, sendo 82 RTs para 17 usuários, mas também recebeu 180 RTs feitos por outros 163 participantes.

Ao total, o narrativismo governista produziu 42.480 postagens feitas por 14.342 participantes. Contudo, destas, 37.446 são RTs. Ou seja, 88% das mensagens foram replicações de 3.422 tuítes inéditos criados por 1073 usuários. Em suma: o comentariado reproduz a narrativa bolsonarista sem receber nada em troca: dos mais de 14 mil participantes governistas, 94% deles não recebeu nenhuma menção ou compartilhamento de suas mensagens no agrupamento analisado, senão a adrenalina de pertencer um grupo de convivência online, o que afaga as angústias que carregam.

O linguajar da narrativa negacionista: o anticomunismo que nega a realidade

Já falamos que a narrativa do governismo bolsonarista é focada em minimizar a gravidade da covid-19 a partir do espalhamento de crenças anti-comunistas que desqualificam do governo chinês para lidar com a doença e prover os países de informações confiáveis sobre o contágio das populações pelo coronavírus. A crença anticomunista tem como efeito a viralidade do sentimento anti-chinês, que será desenvolvido a partir da sobreposição de narrativas, que formam uma timeline discursiva do negacionismo a partir do dia 22 de janeiro (Imagem 7), quando o bolsonarismo se concentrava em três fatos: o lockdown em Wuhan (especialmente o isolamento da cidade e fechamento de aeroporto). A informação do avanço do contágio nos EUA, especialmente em Seattle, onde foi confirmado o primeiro caso. E, por fim, a primeira suspeita de caso de covid-19 no Brasil, na cidade de Belo Horizonte. Basicamente um reconhecimento do terreno do que ocorria na China e, por consequência, no país. É o momento da identificação do que são os “acontecimentos oficias” sobre os quais o grupo precisará se pronunciar através de uma narrativa. Uma espécie de aquecimento informacional que precede o narrativismo.

Imagem 7 — Rede de narrativas (agrupamentos de palavras) do dia 22 de janeiro de 2020 a partir de mensagens publicadas no Twitter com o tema “coronavírus.

O dia 23 é quando a história da sopa de morcego é dada como causa de transmissão do coronavírus, e é apropriada pelas redes bolsonaristas através do post-viral do Conexão Política (grupo de palavras de cor verde do grafo na Imagem 8). O comentariado governista ainda satiriza a imprensa dizendo que qualquer dia iriam descobrir que o coronavírus havia saído do “condomínio de Bolsonaro”, uma ironia com relação ao fato dos principais jornais brasileiros noticiarem as várias investigações sobre a morte da vereadora Marielle Franco e as ligações aos diferentes acontecimentos no condomínio onde reside a família do presidente (é nesse lugar onde habitava o assassino de Marielle).

Havia, no dia 23, uma baixa coesão lexical sobre termos que denotavam o acompanhamento do ministério de saúde acerca da doença (grupo de palavras lilás), mas o que ganhou relevância foi a narrativa dos caos na China, que seria evidenciada pela “massiva intervenção militar” e sanitária em Wuhan, demonstrada pela ligações entre as palavras “cidade-chinesa-milhões” (expressando a viralidade de um vídeo que mostra presença de militares em Wuhan), entre os termos “cidade-exército-problema”, que reproduzia mensagens que apontavam o bloqueio da cidade de Wuhan pela polícia e o exército. Em ambos casos, a referência que atesta a informação é descrita assim: “de acordo c/algumas fontes”, “novas imagens mostrando”. Ou seja, não havia.

Imagem 8 — Rede de narrativas (agrupamentos de palavras) do dia 23 de janeiro de 2020 a partir de mensagens publicadas no Twitter com o tema “coronavírus.

Essa narrativa do caos mantém-se na timeline dessa base militante como representado também no grafo do dia 24 de janeiro (Imagem 9),ainda que de modo menos intenso, já que o mais relevante deste dia é a força da combinação de dois conjunto de léxicos: ‘China-coronavírus-casos’ e “hospital-construção-vírus”. Trata-se da notícia da construção de hospital de mil leitos em menos de uma semana (agrupamento de palavras azul, lilás e laranja), o que seria, para o grupo, “algo obscuro” que comprovaria “o número de infectados absurdamente maior do que o informado pelas autoridades chinesas” (o tuíte com essa teoria foi excluído, mas a participação do comentariado nele ainda está no ar). A teoria da conspiração era levada à sério pelos diários oficiais governistas, que insistiam em desconfiar do que “vinha do comunismo”. Contudo, num tom menor, há também uma pequena presença da narratividade pró-China, quando se é lamentada que unidades de saúde no Brasil fossem inauguradas mas sem estarem funcionando.

Imagem 9 — Rede de narrativas (agrupamentos de palavras) do dia 24 de janeiro de 2020 a partir de mensagens publicadas no Twitter com o tema “coronavírus.

No dia 25, a narrativa entra num nível maior de coesão (Imagem 10), com as palavras mais intensamente próximas uma das outras, revelando pertencer a diferentes universos vocabulares, porém, no interior do mesmo discurso: o da negação. Os dois maiores agrupamentos enunciativos (azul e amarelo) expressam tecem o mesmo enredo: A China sonegaria dados sobre a transmissão da doença. A base argumentativa bolsonarista era de que o problema sanitário na China era muito maior (a base para essa dedução sempre aparece com o termo “algumas fontes independentes”). Para a tropa de narrativistas, a China não possuía uma imprensa livre capaz de revelar informações precisas sobre as mortes em Wuhan. Era uma narrativa montada por um narrativista, que escrevia: “O problema de receber informações de uma ditadura, como a chinesa: os números de casos de coronavirus e a mortalidade estão corretos? Não há imprensa livre no país. A situação pode ser muito pior.” O tuíte, de número 1220857590860656640, foi deletado.

A narratividade bolsonarista vai requerer da China aquilo que o governo Bolsonaro mais se empenhou a limitar durante o curso da pandemia no Brasil: a divulgação de dados e informações sobre o escandaloso número de mortes no Brasil, com pitadas de ódio pela “imprensa livre” no Brasil. O dia 25 fica ainda mais animado com a emergência de outra teoria da conspiração (cuja pista está no agrupamento lilás, através da composição lexical ‘laboratório-escapar-instalação’): o coronavírus poderia escapar de um laboratório de microbiologia chinesa. A tática caça-clique dessa narrativa se baseava num título para viralizar (“China construiu laboratório para estudar SARS e Ebola perto do epicentro do surto do vírus corona”) e um texto, cujo último parágrafo, desmente o próprio título (“não há motivos para suspeitar de que o laboratório esteja conectado ao vírus corona em Wuhan”), um artimanha para colocar o problema da desinformação como uma má interpretação de texto do leitor, e não do autor. Assim qualquer manipulação provocada pela retórica do discurso trajava-se de notícia para ocultar mas o corpo enganoso.

Image 10 — Rede de narrativas (agrupamentos de palavras) do dia 25 de janeiro de 2020 a partir de mensagens publicadas no Twitter com o tema “coronavírus.

De um modo anedótico, ainda no dia 25, o jornalista bolsonarista de Twitter Milton Neves saiu do tom surrealista que marcava governismo para retratar o seu medo das aglomerações carnavalescas espalharem coronavírus pelo país (pontos verdes do grafo na imagem 10). De todas mensagens, esta foi a que mais obteve compartilhamento na bolha bolsonarista, incluindo no dia 26 (Imagem 11), porém, sem coesão com os demais vocábulos governistas em ambos dias.

Imagem 11 — Rede de narrativas (agrupamentos de palavras) do dia 26 de janeiro de 2020 a partir de mensagens publicadas no Twitter com o tema “coronavírus.

O que continuava bem coeso era o sentimento anti-chinês (agrupamento lilás no grafo do dia 26). Os dizeres “jornalistas independentes” — arquétipo da imprecisão e de projeção da própria condição libertadora que narrativistas do governo lançam sobre si — envelopavam mais uma das desconfianças do grupo da China não estar dizendo a verdade sobre o real número de casos em Wuhan. Para a tropa, o lockdown na cidade de Wuhan não tinha a ver como proteção da vida das pessoas, mas com uma tentativa de esconder os “100 mil casos” na cidade, número, aliás, nunca confirmados (no final de fevereiro, a China reportava 55 mil). Em cor azul na Imagem 11, a coesão do discurso da narrativa do vírus escapando do laboratório de Wuhan ganha centralidade. O sentimento anti-chinês é misturado ao anti-imprensa , evidenciado nas mais de 6 mil interações provocadas por uma postagem que representava o desprezo de setores governistas com o tom de urgência do jornalismo brasileiro. Isso provocou, pela primeira vez, que o termo coronavírus ficasse mais associado o trigrama ‘gripe-epidemia-jornalismo’ para o ‘china-contaminação-casos” (comum nos demais dias). Dizia assim o argumento da narrativa:

Fiquem tranquilos. Epidemia de coronavírus é invenção do jornalismo catastrófico. Foi assim com a gripe aviária e outras, que matariam milhões. Não vivemos mais na época da peste negra. Precisamos acreditar na MEDICINA, no poder do conhecimento científico. Igual na AGRONOMIA.

Esse deslocamento demonstra que a negação bolsonarista não se fez sem ataque às notícias que a desagradassem, criando um estigma de lunático, histérico e até anticientífico a quem tomava por séria a pandemia . No entanto, parecia que o tuíte bolsonarista apenas servia de alter ego para a própria consciência ressentida de sua narrativa. Até em função disso, o post de Xico Graziano tenha sido uma das mensagens que mais atraíram as bolhas políticas oposicionistas, quando a confluêncial social-liberal em rede constituiu uma maioria na área de comentários da postagem, passando a ridicularizar a “tranquilidade” exigida pelo bolsonarismo, contrapondo-na com o nervosismo expressado pelo mercado financeiro, que analisava a epidemia em Wuhan como responsável pela desaceleração da economia chinesa e risco futuro de depressão econômica.

Imagem 12 — Rede de narrativas (agrupamentos de palavras) do dia 27 de janeiro de 2020 a partir de mensagens publicadas no Twitter com o tema “coronavírus.

No dia 27, a timeline do negacionismo consolidava o sentimento anti-chinês com mais uma teoria da conspiração: o coronavírus era obra do governo da China para arrefecer manifestações contra o regime comunista (agrupamento rosa no grafo do dia 27), história que ganhava um suporte concreto retirada da imprensa: a mea culpa do prefeito de Wuhan por não agir de modo rápido para conter a transmissão do vírus, declaração que foi traduzido pelo bolsonarismo como confissão de manipulação e censura de informações sobre a pandemia (grupo laranja do grafo na Imagem 12). No grupo lilás, termos que giram em torno do ressentimento com a imprensa continuam a aparecer, reforçando a ideia de que esta estaria sendo complacente com o governo chinês e dura com o brasileiro. Como em geral o teórico da conspiração é um sujeito que busca soluções simples e imediatas para problemas complexos, com a dificuldade de compreender os efeitos de um vírus invisível, as respostas mágicas conspiracionistas, ainda que desconectadas com o plano sanitário, serviam de alívio identitário para manejar o medo do desconhecido entre aqueles que mais à frente vão apoiar a ideia da covid como sendo “apenas uma gripezinha”. Mas, em geral, a timeline narrativa negacionista buscou manter uma ideia de caos e desinformação na China (narrativa alinhada com a do governo dos EUA), baseada, com frequência, no uso de fontes imprecisas para validar fatos (no agrupamento amarelo na Imagem 12, por exemplo, vê-se combinação de termos como ‘presidente-câmara-vereadores-indícios’ como sendo as referências para atestar fuga em massa da cidade de Wuhan).

Imagem 13— Rede de narrativas (agrupamentos de palavras) do dia 28 de janeiro de 2020 a partir de mensagens publicadas no Twitter com o tema “coronavírus.

Quando é chegado o dia 28 (Imagem 13) a gravidade da pandemia, com mais países notificando casos, é expressa na coesão das palavras ‘China-coronavírus-confirma-urgente-mortes’. Um comportamento típico entre negacionistas é a realidade ir e voltar de tempo em tempos na suas timelines. Um choque de realidade no narrativismo governista, ainda que nessa mesma rede de narrativas tenha ali um emaranhado de termos que revelam a linha auxiliar do discursivo negacionista, sobretudo a que gira em torno do léxico ‘laboratório’. Neste dia era lançado mais uma nova teoria da conspiração por um dos diários oficiais do bolsonarismo, o Crítica Nacional, que sustenta que o coronavírus estaria associado a experimentos com armas químicas, baseado na informação postada pelo blog The Washington Times, ligado à extrema-direita dos EUA. Enfim, isso torna-se revelador de como o narrativismo bolsonarista esteve alinhado a muitas teorias da conspiração produzidas pelo propagandismo de Trump na internet. Do resto, o grafo do dia 28 não traz muitas novidades, além da repetição das tramas geradas pelos narrativistas naquela semana, a saber (baseando nas principais ligações entre palavras):

  • Em ‘Cidade-milhões-confinamento-wuhan’ (agrupamento azul no grafo da Image X), visa mostrar um caos na quarentena gerenciada pelo governo chinês.
  • Em ‘Wuhan-censura-manipulação-medidas’ (agrupamento azul), de novo a história da “sonegação” de informação do governo chinês.
  • Em ‘saude-publica-jornalistas-criticaram’, o rancor contra a imprensa por (verde) por não criticar o governo chinês do jeitinho que o bolsonarismo deseja.
  • Em ‘comunista-tirania-confirmado’ (marrom), as deduções sem base material para atacar o governo chinês.
  • Em ‘hospital-vídeo-construindo’ (laranja), a interpretação de que um hospital de campanha não era um feito planejado para acolher os pacientes com uma doença que se agravaria , mas desespero para ocultar cadáveres.

Seja o que for, ainda no dia 28, o presidente Jair Bolsonaro, conectado ao seu cluster narrativo, reproduzia o espírito que dali brotava ao responder a imprensa se o Brasil estava se preparando para uma possível epidemia:

A gente espera que os dados da China sejam reais. Que seja só isso de pessoas contaminadas. Se bem que é bastante. Mas a gente sabe que esses países são mais fechados no tocante a informações”.

Essa declaração do presidente foi publicada pela Revista Veja em reportagem sobre a negativa do presidente em resgatar uma família brasileira com suspeita de covid. No narrativismo governista anti-China, a matéria da Veja foi reciclada pelo blog bolsonarista Renova Mídia, que copiou a mesma declaração, mas colocando-a em outro contexto:

“Bolsonaro preocupado com omissão de dados sobre coronavírus”.

Notas inconclusas sobre o narrativismo

Esse ensaio é motivado pela busca em compreender como coletivos no poder elaboram discursos com fins de defesa de seus modos de governança. Para isso, tentei detalhar o linguajar utilizado pelo governismo bolsonarista para o trato da crise sanitária gerada pelo covid-19, logo no começo da pandemia de covid-19.

Associei a formatação desse linguajar a um processo que denominei de narrativismo. O narrativismo, como havia salientado, é a fabricação e viralização sincronizada de ações e relatos propagandísticos, veiculados em sites de notícias próprios, para agitar e dar direção à agenda das conversações públicas.

Demanda influenciadores (narrativistas), argumento (narrativa) e encenação (atos performativos), mas se comporta em modo distinto a depender das condições e da rede de atores que o enunciam. Em situação de guerra informacional, é comum que as narrativas tendem à divisão da sociedade através de uma construção social de crenças que são contraditas pelos fatos.

O narrativismo é a fabricação de realidades (narrativas) a partir de uma verdade parcial sobre um dado acontecimento, moldada no exagero e imprecisão, para gerar uma interpretação favorável a certa visão de mundo que pretende dominar os fluxos conversacionais na rede. É ancorado numa mobilização virtual de seus participantes que, ao viralizar coordenadamente mensagens nas redes sociais, promovem desconfiança e causam confusão e ruído, cujos efeitos podem ser medidos pelo silenciamento de opositores, a mitigação de efeitos negativos na imagem de suas lideranças e a incorporação da falsa polêmica como pauta do jornalismo profissional, que acaba por inflar ainda mais de popularidade os influenciadores e canais digitais que auxiliarão ainda mais o desvio da atenção para aquilo que é menos relevante num acontecimento.

O narrativismo se vale de duas táticas publicitárias: a encenação e a viralização. A encenação, multimidiática, é um atributo dos atores que detêm poder decisório e visa despertar o interesse público a partir de relatos emocionais com um linguajar próprio (rede de narrativas). É o pólo de quem conta, que se organiza numa engenharia de atos performativos (cerimônias, manifestações, encontros, lives, entrevistas etc) para lançar uma narrativa.

A viralização resulta da ação sincronizada de um comentariado em rede — formado por comentaristas participantes em canais de tevê, redes sociais, imprensa, blogs, bots etc — que reforça a encenação através de virais (com ênfase digital) para tornar certa narrativa dominante numa conversação pública. As táticas propagandísticas para alcançar a viralização são variadas: alegações e acusações infundadas, reciclagem de notícias, fatos incorretos, image spin (imagem contando uma história pré-fabricada), argumento automatizado (reproduzir o mesmo comentário similar em variados canais), conteúdos fora de contextos, notícias falsas, hashtags de exaltação à personalidade de líderes, tuitaços etc.

O que vemos no final de janeiro, dia a dia, é que o negacionismo da pandemia é antes uma defesa do governo, depois, um ataque a alvos específicos que tem duração provisória. É feito de táticas que se alimentam continuamente de novos ciclos de notícias, numa espiral de criação de tendências cujo principal objetivo é sedimentar um escudo protetor para aqueles que concentram o Poder. Assim, narrativistas são o comentariado do poder. A narrativa, a própria ordem do discurso. O comentariado não funciona sem um comando hierarquizado, dependentes que são da narrativa encomendada pelo Poder. Querem, em geral, ter o selo de “jornalistas” para dar mais credibilidade à redação publicitária, emulando a linguagem da imprensa mas sem a responsabilidade de verificar a autenticidade dos acontecimentos e de escutar a vozes que se contradizem. Mas, na prática, são propagandistas contratados para reter crises de relações públicas, em geral, viralizadas em plataformas digitais.

Por isso que Narrativa se confunde, muitas vezes, com a fake news. Seu caráter inventivo explora a dimensão emocional que sustenta, antes, a racionalidade dos discursos políticos. É mais confortável para os humanos que suas crenças e ideologias sejam asseguradas do que contraditas. A pandemia de covid-19 tem demonstrado os danos físicos e psicológicos da “ilusão das narrativas”, quando milhares de pessoas se projetam em histórias de cura (a cloroquina), de prevenção (a ivermectina) ou de relaxamento de medidas sanitárias (a imunidade de rebanho). Em geral, essas narrativas estão embasadas em falas encenadas por políticos, associações médicas, comentaristas, influenciadores digitais e até por cientistas. Numa acepção digital, a narrativa é, então, um discurso que dá sustentação às identidades políticas, como forma mais bem acabada da bajulação aqueles que estão numa posição (mesmo que temporária) de poder, apoiando quaisquer medidas que saíam destes, mesmo quando absolutamente equivocadas.

Portanto, longe de dever ser tipificada como fake news, a narrativa é a própria verdade do poder. Enquanto a oposição ao narrativismo se apresenta organizada em relatos de causas saturando suas audiências com materiais autênticos, o narrativismo reitera o engano continuamente através de vários de seus canais, até que a audiência geral (não apenas as suas) comece a perder um “senso de localização” , já não sabendo mais separar o que é verdade do que não é. Por isso que autores como Philip Seargeant (2020) correlacionam a fabricação de narrativas com as técnicas de gas-lighting, por ser técnicas que tentam manipular o sentido de realidade de uma pessoa.

O que tentei destacar nesse ensaio é que o narrativismo revela o modo como as máquinas informacionais de poder funcionam. Antes todo dominado pelo jornalismo “chapa-branca”, quando o sistema de comunicação de massa monopolizava o poder de emoldurar o discurso do status quo vendendo-o às suas audiências, o narrativismo se autonomizou desse regime comunicacional. Possui ecossistema informacional próprio, mais digital do que massivo, embora ainda com certa retroalimentação entre eles (vejam aí os youtubers de todas as colorações partidárias indo e vindos dos canais de televisão aberta!).

O narrativismo vangloria-se de seus feitos públicos, sobretudo, quando tornados “assuntos do momento” (trending topics) em conversações coletivas. Como bem apontou Renee DiResta, “na era da propaganda computacional, se você cria uma tendência, você cria uma verdade.” Contudo, também é verdade que os rastros narrativos inscritos num comportamento grupal — a clusterização de suas interações — poder ser recolhido incessantemente através de técnicas de extração de dados massivos, facilitando o a pesquisa de como a ordem do poder é desenhada, executada e difundida, em suma, narrada.

Referências Bibliográficas:
DiResta, Renee. Computational Propaganda. If You Make It Trend, You Make It True. Disponível na internet <https://yalereview.yale.edu/computational-propaganda>, acesso em 10/05/2020

Malini, Fabio. Quando tudo parecia ser tão distante daqui: a eclosão das narrativas sobre covid-19. Disponível na internet: <http://www.labic.net/cartografia/quando-tudo-parecia-ser-distante-daqui/>, acesso em 05/08/2020

Seargeant, Philip. The Art of Political Storytelling: Why Stories Win Votes in Post-truth Politics. London: Bloomsbury Academic, 2020

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Fabio Malini

Professor do Departamento de Comunicação Social Ufes/Brasil. Pesquiso ciência de dados, política e redes sociais.